Reis Taumaturgos e a Linhagem Sagrada

12-02-2014 15:38

 

Os Merovíngios reinaram entre os séculos V e VII, sobre as àreas que compoem agora parte da actual França, Alemanha, Suíça e Países Baixos. Entre o fim do Império Romano e o início da Idade Média, após mais de um século de instabilidade entre invasores e defesas territoriais, os monarcas merovíngios conseguem de facto o controlo dos territórios por um período largo de tempo.
 
Este nome tem como raiz, Merovée, rei primeiro da casta, semi-lendário sobre o qual infelizmente carece-se de dados concretos, apenas um grupo de lendas e relatos o referem, uma das quais dá fé de que se terá aliado ao general romano Aetius para combater Átila, o Huno.
O seu neto, Clóvis, foi o responsável pela conversão dos Francos ao Cristianismo, ele próprio se faz baptizar pelo Natal de 496, e unifica os reinos francos, quando derrota Burguinhões, Alamanos e Visigodos (estes últimos na Batalha de Vouillé, em 507).
 
O reinado Merovíngio não teve nada de simples. O reino era assumido como um bem pessoal, não fazendo distinção entre direito público e privado, desta forma, os monarcas foram-no repartindo pelos herdeiros. Com tal atitude e ajuda do tempo, vários reinos voltaram a formar-se acabando com a questão da unificação, e cada um deles, com o passar do tempo se tornava por si só, cada vez mais frágil: a Austrásia, a Nêustria, a Aquitânia e a Borgonha. 
 
Com o desenvolvimento da noção do exercício do poder e da estrutura administrativa da casa real, os monarcas merovíngios foram delegando os seus poderes governativos no prefeito (ou mordomo) do palácio, figura que acabou por acumular em si os poderes governativos na prática... ora isto veio criar uma "dinastia" de prefeitos que acabou legitimada pela vitória de um deles, Carlos Martel, na batalha de Poitiers, corria o ano de  732, quando as tropas muçulmanas foram finalmente, e a muito custo, repelidas. Reduzidos a um simples papel honorífico, pouco tempo levou para que fossem destituídos do poder na sua totalidade: Pepino, o Breve em 751, derruba o último soberano merovíngio, Childerico III, ao qual num rito simbólico, corta o longo cabelo e as barbas e depois, aprisiona.
 
É curioso que, tal como a Sansão, tenha sido cortado o cabelo ao rei deposto. De facto, um dos atributos destes monarcas era precisamente este, a imagem da sua divindade, não cortavam o cabelo nem a barba durante toda a sua vida. Várias eram as marcas sagradas que neles estavam inscritas, começando pela própria concepção de Meroveu; tinha dois pais: um, o pai natural, o outro seria uma divindade marinha denominado Quinotauro, que não resistira à beleza da mãe de Merovée ao banhar-se no mar e com ela acasalara, deste modo, nas veias de Merovée corria então o sangue franco misturado com o de uma figura mítica aquática. Os reis merovíngios eram, por esta forma, considerados reis-sacerdotes, nunca cortando o cabelo, e, de nascença, tinham por sinal uma cruz vermelha entre os ombros. Os seus trajes reais eram ornamentados com pendões dotados de poderes curativos.
 
Outra das tradições reza que esta família real era descendente de Jesus e de Maria Madalena. Haveria assim, uma linhagem que ia de Jesus até à dinastia dos Merovíngios, os célebres reis taumaturgos que precederam Carlos Magno e a sua dinastia. Facto comprovado é que os monarcas desta casa reinante, que termina os seus dias em meados do século VIII, eram realmente tidos como divinos curadores através do simples toque, isto é, taumaturgos. Carlos Magno e os seus sucessores vão manter esta linha de alguma sacralidade aliada à função régia, inclusivamente procuram legitimar a sucessão Carolíngia através de casamentos com princesas Merovíngias. Este monarca apoia-se no que de positivo encontrou da formulação e práticas anteriores. 
 
A apropriação do sagrado, que implicará disputas longas e ferozes com o Papado e demais poderes até, pelo menos no que respeita ao seu auge, à chamada Reforma Gregoriana no século XIII, ou se preferirmos numa forma menos directa, até à Revolução Francesa já em pleno final do século XVIII, será uma forte linha de continuidade dos monarcas carolíngios em relação aos merovíngios: essa noção estaria profundamente enraizada nas ideias e práticas de poder, na forma como as gentes viam os seus suseranos. Certo é que dinastia após dinastia, ocorre sempre uma correlação entre o espiritual e o secular, entre o guerreiro e o sacerdote que, no caso do monarca, encontra a sua razão de ser no acto da cura. O monarca recebe consagração eclesiástica (principalmente com a unção), reforçando a ambivalência sagrado/profano.