Reescrever a História

20-10-2013 18:25

A Península Ibérica, no extremo ocidental da Europa, recolheu o limo de todos os povos na sua imparável marcha em relação ao sol posto, meta instintiva de todos os caminhos da tradição. Todos esses povos deixaram aqui a sua marca: uma marca que revelava o grau de conhecimento zelosamente guardado pela consciência colectiva. A Península Ibérica vinha a conter, em certo sentido, a essência transcendente de muitas culturas que, desde a noite dos tempos, lhe tinham transmitido parte das suas estruturas vitais, das suas crenças e dos seus anseios, das suas esperanças, das suas aspirações e até dos seus saberes perdidos.
Hoje, sem dúvida, tornar-se-nos-ia impossível imaginar o que pode ter sido a bagagem de saber e de experiência daqueles povos inscritos nuns esquemas de consciência tão distintos dos que agora regem o nosso comportamento e num moldes culturais tão diferentes do que actualmente reconhecemos como conhecimento e saber. Mas bastar-nos-ia recorrer sem preconceitos às escassas chaves de reconhecimento que ainda é possível de detectar naquele passado para nos precatarmos da evidência de que, ainda que por caminhos díspares, é necessário captar conscientemente aquilo que nos rodeia, inclusivamente sem recorrer às hipertrofiadas ajudas tecnológicas com as quais contamos. Possivelmente, ainda que não seja nem pouco mais ou menos o único caminho, uma intuição consciente, despertada pelo encontro com o ambiente à volta, poderia coadjuvar esse conhecimento, sempre que, além disso, fôssemos incapazes de a combinar com um raciocínio igualmente lúcido que a medisse e fosse capaz de a corroborar.

Ao longo da História humana, individualidades e minorias estritas, desde a marginalização e da heterodoxia tentaram aproximar-se das chaves da tradição para lhe extrair as suas mensagens. Os poderes constituídos sempre se rebelaram contra essas tentativas; perseguiram-nas com raiva e, quando as apanharam, decretaram a sua condenação. Essa condenação foi a que sofreu o Templo, pois ainda que reconheçamos que a ordem se perdeu pela cobiça dos poderosos, as acusações que foram utilizadas em todos os tribunais - à margem de condenações ou de absolvições - foram fundamentalmente aquelas que identificavam o Templo com um agrupamento herético que utilizava em seu benefício os poderes que o Maligno confere aos seus fiéis, para prosperar e alcançar as cotas de poder que os Templários alcançaram.
Mesmo contado previamente com a intenção abolicionista com a qual se orquestrou a queda e a supressão da Ordem do Templo, não restam dúvidas de que a Igreja a teria defendido, apesar de Clemente V, se não tivesse captado que entre aquelas acusações flutuava um tufo heterodoxo que se podia tornar altamente perigoso se não fosse atacado a tempo. O Templo, com todo o seu poder económico, constituía matéria perigosa; mas se efectivamente a esse poder se acrescentasse ao que toda a gente da Idade Média cria a pés juntos que se proporcionava o pacto satânico - uma crença que se prolongou até aos processos de bruxaria do século XVII - o perigo multiplicava-se até tornar urgente pôr fim à instituição que supostamente se servia dele para alcançar as cotas de poder e de influência que o Templo chegou a alcançar.

Sem dúvida, o mundo medieval, e sobretudo os poderosos daquele mundo, deram na sua maioria um profundo suspiro de alívio quando o Templo foi abolido. Reunia demasiadas interrogações na sua estrutura, tinha alcançado demasiado poder. Estava rodeado de demasiados mistérios nos quais ninguém, por mais influente que fosse, podia penetrar sem o consentimento dos frades. Enfim, constituía uma ameaça latente cuja natureza ninguém conhecia, mas suspeita para muitos, que, perdida a Terra Santa, viram na Ordem uma arma extremamente eficaz ao serviço de um Igreja que, com a sua ajuda, podia impor a sua vontade sempre que o quisesse a partir de dentro dos próprios Estados, sem chamar a cruzada, visto que os seus cruzados estavam já dentro de cada reino, governando a sua fazenda sem que força alguma se atrevesse a fazer-lhes frente.